terça-feira, 30 de outubro de 2012

Transparente


Não que ele quisesse fugir de suas responsabilidades, mas o que lhe conduzia naquele momento era uma vontade imensa de se tornar invisível. Era o que lhe permitia tomar aquele frasco completo. Não necessariamente o ardor da culpa por ter traído a quem mais amava, mas o mero olhar do outro sobre o algoz que ele havia se tornado era o que tirava o soro de dentro de seu recipiente. Não havia quem compreendesse aquela sensação de sujeira e asco de si mesmo. Seria possível que aquele ato lhe entregasse uma nova existência a partir de então?

Não foi o que aconteceu. Na verdade, ele se sentia até meio patético diante daquela frágil invisibilidade, que, na realidade, havia se feito somente uma leve transparência. Enxergava seus órgãos e suas funcionalidades acontecendo: o sangue que bombeava, o estômago que digeria, os pulmões que inflavam e murchavam... Não havia sujeira naquele corpo, mas em outro lugar. Interessante que, para ele, naquele instante ele não tinha nome ou qualquer história que lhe comprometesse a dignidade. Era somente um humano, como qualquer outro. Matéria. E isso já bastava para dizer tudo que ele pensava sobre si mesmo. Por que haveria de se preocupar com o que havia feito ou deixado de fazer? Que legado tão importante era aquele que todos lhe cobravam? Que história ele havia ajudado a construir?

Não importava mais. A transparência havia lhe feito perceber o que era mais importante do que a fina camada de gabardine que lhe revestia.

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